A assinatura da Medida Provisória 984 pelo presidente Jair Bolsonaro em meados de junho chacoalhou o futebol brasileiro.
Subitamente, os direitos de transmissão de uma partida de futebol passaram a pertencer apenas ao mandante, sem necessidade de anuência do visitante, como determinava a Lei Pelé.
O Flamengo acabou nos holofotes.
Não só por ser o clube mais popular do Brasil e pelas visitas do presidente Rodolfo Landim a Brasília. Mas também por não ter negociado seus direitos de transmissão do Campeonato Carioca com a TV Globo, detentora dos direitos restantes da competição até 2024.
Vice-presidente geral e da Procuradoria Geral do Flamengo, Rodrigo Dunshee de Abranches conversou com a ESPN por chamada de vídeo para explicar o lado do clube.
Na volta do futebol após a paralisação devido à pandemia do novo coronavírus, o confronto entre Bangu e Flamengo não contou com transmissão de TV. Segundo Dunshee, um equívoco da TV Globo que, ele garante, o Flamengo não vai repetir.
Baseado na MP 984, o clube vai transmitir a partida diante do Boavista, marcada pela Ferj para primeiro de julho. A TV Globo, por sua vez, notificou o clube e afirmou em nota oficial que o Flamengo não tem esse direito mesmo com a mudança atual na legislação.
"A gente está chamando de Lei Áurea do futebol porque não é normal que uma entidade possa aprisionar clubes numa arapuca contratual", diz Rodrigo Dunshee.
Leia, na íntegra, a entrevista:
Gostaria que você explicasse a situação. O Flamengo entende que pode transmitir os jogos mesmo que os contratos tenham sido assinados pela Globo com os adversários antes da publicação da MP?
Exatamente. A gente analisou essa questão do ponto de vista jurídico. São vários argumentos, vou tentar explicar. Primeiro deles é que o Flamengo não tem contrato com a Globo. Segundo é que esse contrato que a Globo tem tinha uma previsão da não participação do Flamengo. Caso o Flamengo não participasse haveria uma redução, uma multa redutora do valor global dos outros clubes da ordem de 25%.
Então já está precificado e combinado em relação ao Flamengo que ela (Globo) não vai pagar nada a nenhum clube por esse clube jogar com o Flamengo. Ela reduziu o contrato em 25%. Ela já teve essa economia de 25%. E a gente entende que isso é uma coisa que reforça a nossa ótica de que o Flamengo está totalmente fora e os outros clubes também não tinham nenhum direito, em relação ao Flamengo, negociado.
Porque esse contrato da Globo com os clubes, os demais clubes, que olhei e li, ele diz que a Globo está comprando os direitos legais de transmissão desses times. E direitos legais de transmissão não necessariamente é uma coisa que fique paralisada. A lei pode mudar a forma de se apurar esses direitos. Então antigamente o direito legal de transmissão ele era pertencente aos dois clubes de uma partida. Agora ele pertence ao mandante.
Então continua válido o contrato da Globo. Só que os direitos legais de transmissão que eram duas metades agora é um inteiro do valor de um jogo. Então a Globo tem direitos legais de transmissão hoje, enquanto está vigente a Medida Provisória, referentes a todos os jogos em que os clubes com os quais ela fez contrato são mandantes.
Então não faz sentido o Flamengo que tem uma lei que permite a ele transmitir o jogo sozinho, sem precisar da anuência de ninguém, que fique preso num contrato que tem mais validade de quatro anos por conta de uma infundada alegação de direito adquirido de um contrato que eu não sou parte, que eu tenho a lei do meu lado. Se eu tenho a lei do meu lado, não sou parte desse contrato, estou exercendo um regular direito.
Exercício regular do direito é quando você tem um direito assegurado por lei, vai lá e faz esse direito. Ninguém pode reclamar de você exercer um direito que está reconhecido pela lei, entendeu? E eu não estou fazendo nenhum abuso de direito. Estou fazendo um exercício regular do direito. Esse é um fato importante que a gente estudou bastante e está muito seguro disso.
Outro fundamento que é importante que as pessoas entendam é que o maior beneficiário dessa lei, que a gente está chamando de Lei Áurea do futebol porque não é normal que uma entidade possa aprisionar clubes numa arapuca contratual. Então essa Lei Áurea do futebol ela é muito importante para quem? Para o telespectador, para o torcedor. Eles são os destinatários finais dessa medida.
O Flamengo ou outro clube qualquer que num momento qualquer tenha uma divergência comercial com uma empresa de transmissão ele vai poder passar os jogos para os seus telespectadores nem que seja de graça. Vai numa plataforma dessas e libera. Então ganha muito o telespectador de opções em último caso.
Sempre em último caso porque acho que o grande player do mercado ainda vão ser as televisões. Acho que as televisões têm um produto que é o canal de televisão, o pay-per-view, televisão por assinatura, isso ainda vai ser por um tempo muito importante. A gente está olhando que nessa questão da pandemia os estádios estão fechados. As pessoas não podem assistir aos jogos. E acho que foi uma insensibilidade grande da Globo não passar por exemplo o jogo do Bangu que o presidente Landim falou em público para televisão que estava aberto.
A lei está em vigor e pode passar o jogo do Bangu. Eu sou visitante, o Bangu é o mandante, pode passar. E a Globo não passou por quê? Porque a Globo tem os interesses comerciais dela e ela acha que vai conseguir aprisionar o Flamengo nessa arapuca. Eu acho que isso é de uma insensibilidade grande com o Flamengo e especialmente com a nação rubro-negra e os próprios torcedores dos outros times também.
Tem muita gente que assiste até para secar, você sabe (risos). Então acho que todo espectro legal está do lado do Flamengo. A gente sabe da força da Globo, que a Globo tem um exército de advogados e tal. A gente respeita, mas a gente está muito confiante que não tem direito adquirido nenhum e que os direitos adquiridos em relações de trato sucessivo, que se renovam mês a mês ou rodada de futebol a rodada de futebol, a lei se aplica imediatamente na próxima situação futura. Não se aplica ao jogo que já passou, antigo, jogo antes da pandemia. Mas aos novos jogos a lei se aplica.
Até porque especificamente o Flamengo não tem contrato com a Globo. Estou muito seguro, mas a gente sabe que vai depender se vai ter alguma medida judicial, se não vai ter, o Flamengo vai ter de se defender e tal. É isso a grosso modo.
A Globo notificou o Flamengo, afirmando que o clube não poderia transmitir os jogos se quiser na FlaTV ou qualquer player, como se diz, porque ela tem os direitos. O Flamengo também respondeu a emissora? Qual foi o procedimento do clube diante dessa notificação?
O Flamengo contra notificou a Globo e disse também, em resumo, explicou tudo isso que eu disse, por A mais B. A questão dos torcedores, a questão da falta de contrato, a importância para o futebol brasileiro dessa medida. E a gente disse para a Globo que a gente tem o direito, reconhecido por lei, a gente vai exercer esse direito, a gente vai passar esse jogo. E que se ela impedir será responsável por pagar uma indenização de perdas e danos ao Flamengo.
Devolvemos a ela na mesma linha, com o mesmo tom que ela disse. Não acreditamos que o Judiciário vá nos colocar dentro de uma arapuca de um contrato que nós não somos signatários.
A Ferj marcou o jogo contra o Boavista para quarta-feira, primeiro de julho. O Flamengo se movimenta no sentido de que vai transmitir essa partida seja na FlaTV ou em alguma outra plataforma de streaming, não é isso?
Isso. Nosso vice-presidente de marketing, o Gustavo Oliveira, está negociando a plataforma que será usada, está vendo. Mas a gente está dentro do nosso direito e vamos transmitir, sim. Ainda mais na pandemia que ninguém pode ir ao estádio.
Se o Flamengo tem razão ou não - eu acho que tem e estou muito confiante disso - mas acho que o Judiciário devia se fosse chamado a isso, se a Globo for insensível a esse ponto, o Judiciário deveria converter essa discussão em perdas e danos, entendeu? Quem estiver sem razão indeniza o outro. Agora proibir o telespectador de assistir um espetáculo, numa situação dessa de pandemia, acho um absurdo.
Você imagina o valor dessa indenização caso o Flamengo seja impedido de transmitir o jogo contra o Boavista?
Não. É mais ou menos o valor que deve ser de um jogo. Quanto custa um jogo hoje em dia. Não sei dizer exatamente. Ou quanto foi vendido da última vez, normalmente são esses os parâmetros utilizados. Qual é o preço disso no mercado hoje em dia. Normalmente é isso.
A Globo não vai ter prejuízo nenhum porque ela: primeiro, não pagou o Flamengo por um direito que é do Flamengo. E segundo que ela economizou 20% não tendo o Flamengo. Então a Globo só está tendo vantagem. Além disso ela tem direito de passar o jogo de visitante, que ela abriu mão. Uma decisão que acho totalmente equivocada, mas eu respeito porque é um direito dela de tomar a decisão que bem quiser em relação aos jogos em que o Flamengo é visitante.
Você acha que esse enfrentamento pode estremecer a relação, já que é uma parceria que existe e há, por exemplo, contrato pelos direitos do Campeonato Brasileiro até 2024?
Bom, da parte do Flamengo isso é um desacerto comercial, estritamente financeiro e a gente entende que não tem consequência em nenhum contrato, não da nossa parte. Você deve fazer essa pergunta para a Globo, para as pessoas que estão na Globo. Da nossa parte é puramente negocial. A gente agora tem uma possibilidade legal de fazer transmissão e a gente tem um contrato até 2024 que a gente tem de cumprir. Acho que é assim que deve ser, né? Sem amor. São negócios.
Fonte: Espn
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