Quem vê o nervosismo de Jorge Jesus do lado do campo não faz ideia do que o técnico do Flamengo passou para cumprir seu sonho de trabalhar no Brasil.
Hoje em alta e na liderança do Campeonato Brasileiro, o português de 65 anos tem ganhado fama pela espontaneidade, pelas respostas diretas e pelo jeito simples. Mas uma ida à sua agência bancária para conferir a conta quase mudou por completo a sua vida.
Foi quando Jesus tentou checá-la, não conseguiu e foi informado que o seu banco havia quebrado em Portugal.
Braço-direito do treinador e seu advogado, Luís Miguel Henrique estava ao seu lado e conta que, na mesma hora, ele ficou "pálido". Ao todo, as economias que Jesus havia juntado ao longo de 30 anos chegavam a 1,093 milhão de euros (R$ 4,8 milhões, na cotação atual) e tinham simplesmente desaparecido.
"Sem chão", Jesus foi um dos milhares de clientes a se desesperar com a falência do BPP (Banco Privado Português) e entrar na fila a partir de 2010 para recuperar parte do dinheiro. Naquela altura, ele se encontrava no comando do Braga.
O episódio é descrito por pessoas próximas como o mais difícil da carreira do técnico do Flamengo, que estava longe ainda de ser o fenômeno midiático que é hoje, atrás possivelmente apenas de José Mourinho em seu país.
Entre outras figuras ligadas ao futebol, também viram sumir parte de suas fortunas os ex-jogadores Luís Figo e Simão Sabrosa.
A crise financeira de Portugal perdurou mais alguns anos, e somente mais recentemente, com o crescimento do turismo e outros fatores, o país conseguiu deixar a recessão que contribuiu para que quase um terço de sua população emigrasse.
"Jesus sofreu muito com a situação do BPP. Ele acabou por recuperar boa parte do montante do milhão de euros que tinha investido em poupanças de carreira, mas foi um processo muito desgastante", recorda Duarte Tornesi, jornalista do jornal O Jogo e profundo conhecedor da carreira do treinador, ao UOL Esporte.
"A falência do banco aconteceu praticamente na mesma altura em que se mudou para o Benfica. Ele até chegou a dizer publicamente que era um privilegiado porque tinha trabalho. Alguns dos lesados, por outro lado, eram aposentados e não tinham como recuperar esse dinheiro", completa.
O drama de Jesus foi ainda maior porque ele confiava que os seus investimentos eram seguros e não havia qualquer risco. A partir de então, foi obrigado a rever a sua postura em relação a seu dinheiro e deixou de concentrá-lo em somente uma instituição.
"Esse foi o momento mais difícil que tive com ele. Na altura, foi um baque muito grande. Estamos falando da vida toda dele até o Braga. [Ele] Já estava no Braga, e tudo que tinha conquistado na vida profissionalmente, que não foi fácil... Houve um momento em que estava com ele no banco e sabia o que acontecia enquanto ele não tinha a noção de que o funcionário do banco o tinha passado para trás. Estava ao seu lado, lembro exatamente a reação dele e a palidez que ficou", relembrou o advogado Luís Miguel Henrique, ao Canal 11.
"É só imaginar qualquer um de nós, naquele momento da vida, ficar sem tudo que construiu. O mais interessante é que, alguns dias depois, ele estava pura e simplesmente concentrado nas suas responsabilidades no Braga. Ele sabia que, independentemente daquilo que iria ocorrer, caberia a ele novamente trabalhar e fazer mais ou melhor do que havia feito. Ele não sabia se conseguiria alguma vez reconquistar aquilo, mas eu tentava transmitir confiança. Ele tinha consciência que, em caso de sucesso profissional, o resto viria trás", acrescentou.
Quase perdeu tudo de novo
Depois do pesadelo com o BPP, Jesus conseguiu mais do que dobrar o patrimônio por meio de seu trabalho, embora tenha estado prestes a perdê-lo mais uma vez quando outro tradicional banco português, o BES (Banco Espírito Santo), quebrou em 2016.
No entanto, dessa vez, ele se adiantou aos primeiros sinais de alerta que surgiram no noticiário e retirou os 4 milhões de euros (R$ 17,8 milhões, na cotação atual) que havia aplicado antes que a situação se agravasse ainda mais. Na ocasião, brincou e disse que "tinha aprendido que não podia ter os ovos todos no mesmo saco e que precisava distribui-los pelos cestos".
Hoje em dia, o sofrimento que passou ao lado de sua família não lhe tira mais o sono, e Jesus pode seguir a sua vida normalmente - mesmo sem ter recuperado toda grana que perdeu com o BPP.
Com contrato até junho de 2020 com o Flamengo, o treinador tenta deixar a sua marca no futebol brasileiro antes de definir o seu futuro. Apesar do sucesso instantâneo, seus compatriotas não apostam em uma relação duradoura.
"No Flamengo, ele está conseguindo mostrar o melhor Jesus, o que se autointitulava o mestre da tática, jogando bem, com bastante gols, um futebol atrativo. São todas marcas que Jesus tem. Acredito que ele irá terminar o ano no Flamengo, mas não me parece que irá ficar muito mais tempo. Ele é muito apegado à família, suas raízes, sente com certeza falta de comer seu peixe grelhado", afirma Tornesi.
"Ele nunca quis emigrar. Então, é uma situação totalmente nova para ele. Ele é muito apegado às pequenas coisas de Portugal, jogar cartas com amigos, ter esse convívio, grandes almoços e jantares. Não me parece que seja um projeto de largo prazo. Quando muito, se ganhar a Libertadores, pode querer jogar o Mundial de Clubes, perfeitamente normal, faz parte da ambição dele ter sempre uma questão midiática à volta de seu nome. Mas não acredito que se prolongue muito nessa aventura no Rio", completa.