Começo de temporada para brasileiros, desfecho para europeus, em março deste ano José Mourinho fez um monólogo de 12 minutos para se defender de críticas.
Contratado para fazer do Manchester United vitorioso, o técnico tinha uma das maiores potências financeiras do mundo sob seu comando, mas não convertia o dinheiro em títulos da Liga dos Campeões. E ele se defendeu assim. “Existe algo que eu costumo chamar de herança futebolística. Eu tento traduzir do meu português para o inglês, e a tradução palavra por palavra é algo como herança futebolística”. O treinador mencionou resultados recentes. Em 2013, fora da competição europeia nas oitavas de final. Em 2014, fora nas quartas. Em 2015, ausente do torneio. Em 2016, fora na fase de grupos. Em 2017, de novo ausente. A sequência de insucessos era a herança futebolística que ele assumira. O monólogo é de José Mourinho. Mas poderia ser de algum dirigente do Flamengo. Embora tenha melhorado seu desempenho esportivo, como Mourinho fez no United, o clube tem sobre sua gestão o peso de sua herança futebolística.
Depois de cinco anos com frequentes aumentos em seu faturamento, reestruturação de suas dívidas e a gradual elevação do investimento que faz em atletas, o Flamengo entra em 2018 com a oportunidade – e a responsabilidade – de dar um novo salto de qualidade em sua administração. Não se trata unicamente de ganhar títulos, como quer a torcida. O que está em jogo é a criação de uma identidade para o seu futebol. O clube conseguiu em 2017 ter uma de suas melhores temporadas desde os anos 1980. Foi campeão do Campeonato Carioca, chegou à final da Copa do Brasil, chegou à final da Sul-Americana, terminou o Brasileirão na sexta colocação e jogou a Libertadores. Se fizesse como Mourinho, um dirigente flamenguista poderia retroceder anos a fio até encontrar uma temporada tão boa quanto a passada. Voltaria décadas e só encontraria um ano positivo assim no início dos anos 1980, fase dourada de Zico, Júnior e tantos outros craques rubro-negros. Herança futebolística. A questão – e isso tem tudo a ver com gestão – é que o Flamengo ainda não conseguiu desenvolver uma cultura vencedora dentro do futebol.
Quando se faz uma análise crítica acerca do desempenho esportivo do Flamengo, é importante que não se puxe todo o retrospecto desde o início da gestão de Eduardo Bandeira de Mello. A situação não era a mesma. Os três primeiros anos desta administração, ungida por um grupo de executivos e empresários que cansou de ver o time do coração na pindaíba, foram usados basicamente para arrumar a casa. Não custa lembrar. O clube devia em 2013 um valor próximo de R$ 700 milhões. Um endividamento desse tamanho ameaça a existência de um time por não deixar que ele tenha acesso ao dinheiro. Entrou alguma grana pelo contrato de televisão? A Justiça penhorou para quitar dívidas trabalhistas. As bilheterias começaram a render mais dinheiro a partir da empolgação da torcida com uma nova gestão? A Justiça penhorou de novo. Talvez o torcedor nunca vá ter a dimensão apropriada do trabalho que foi realizado ali para conter as dívidas. O Flamengo precisou negociar acordos com credores, tomar empréstimos bancários baseado na credibilidade dos nomes que o dirigiam, entrar no Ato Trabalhista para formar uma espécie de fila – nesse esquema, a Justiça para de penhorar toda receita e passa a aceitar que apenas um percentual do faturamento seja tirado todo mês para pagar a fila de ex-jogadores.
2013, 2014 e 2015 não foram temporadas em que se podia investir. O repentino aumento da arrecadação flamenguista saltava aos olhos de analistas e jornalistas, passava uma falsa sensação de riqueza por fazer com que a equipe encabeçasse rankings, mas o faturamento não podia ser gasto com o elenco atual. A maior parte do dinheiro pagava a herança financeira. A linha que demonstra mais claramente essa situação é a das remunerações do futebol – a soma de salários e direitos de imagem. O faturamento rubro-negro subiu consistentemente, mas o investimento feito no elenco foi mantido no mesmo patamar em 2014 e até reduzido em 2015.
Até então, o Corinthians investia mais do que o Flamengo. Cruzeiro, São Paulo e Internacional também investiam mais. A correlação entre dinheiro e performance não pode ser feita só na vertical – a comparar o estado financeiro de tal clube contra o histórico dele mesmo. Numa comparação horizontal, com os principais concorrentes, percebe-se que não havia base para exigir da equipe rubro-negra um desempenho muito melhor do que o dos principais adversários. Ainda mais porque nesse período a configuração das competições brasileiras mudou. O Flamengo foi o último time a se apoiar numa Copa do Brasil desvalorizada, que não contava com os melhores do país, para assegurar o seu título em 2013. Conforme o torneio foi encorpado a partir de 2014, ficou mais difícil vencê-lo.
A folha flamenguista só começou a aumentar a partir de 2016. Não por acaso, melhorou também a performance. O time que se acostumara a frequentar o meio da tabela chegou ao fim daquela temporada em terceiro no Brasileirão. Uma posição compatível com o investimento que passou a fazer em salários, agora com a segunda maior folha do futebol brasileiro. Faça um favor. Anote um número. A diferença de Flamengo e Cruzeiro, terceira maior folha do país, foi de 1,04. Esta é a comparação entre segundo e terceiro. A temporada de 2017 foi a da consolidação. À medida que continuou a reduzir as dívidas e liberar o caixa para enfim investir no futebol, a diretoria elevou a folha para R$ 219 milhões – novamente abaixo do Palmeiras. São nítidas as razões para esse aumento. O Flamengo reforçou seu elenco com a aquisição de Éverton Ribeiro, a mais cara de seu histórico, além do Berrío, dos laterais Trauco e Renê, do volante Rômulo e do meia Conca. O torcedor tem motivos para ter bronca daqueles que chegaram e não renderam, mas o ponto aqui não é este. Sabe a comparação entre segunda e terceira maiores folhas? O Flamengo em 2017 teve 1,25 em relação ao terceiro colocado, o Corinthians. O elástico do investimento continuou a esticar.
É por isso que o Flamengo tem tudo para ganhar títulos – ou, numa métrica mais realista de sucesso no futebol, disputar toda competição que participa para vencer. Enquanto adversários como Botafogo, Fluminense e Vasco penam para manter seus melhores atletas para o ano seguinte, dependentes da balança do custo-benefício para a manutenção de sua competividade, o Flamengo mantém seu elenco e lida com a obrigação não a remontá-lo do quase zero, mas aperfeiçoá-lo com a aquisição de substitutos para posições em que rendeu abaixo do esperado.
A temporada de 2017 reservou boas notícias do ponto de vista financeiro. O endividamento continua a cair e chegou aos R$ 450 milhões. Esse numerão deve ser quebrado em algumas partes para que se tenha melhor compreensão. A maior dívida ainda é com o governo federal, correspondente a 65% do total. Aqui não tem susto. A equipe aderiu ao refinanciamento de dívidas fiscais por meio do Profut, em 2015, e só tem de manter parcelas em dia para não se preocupar. As dívidas trabalhistas hoje representam só 13% do total, um quadro muitíssimo diferente daquele encontrado cinco anos atrás. Enquanto adversários como o Botafogo comemoraram o fato de ter entrado no Ato Trabalhista, a fila de credores que equaciona os pagamentos e alivia o fluxo de caixa, o Flamengo saiu desse mesmo acordão no término de 2017. O efeito prático disso se vê no caixa. Só em novembro do ano passado, com a saída do acordão, o clube conseguiu acabar com o desconto de 15% de suas receitas.
Em termos de faturamento, o Flamengo continuou a expandir receitas de maneira saudável. A entrada de dinheiro dos direitos de transmissão, geralmente acima dos 50% do faturamento em outros clubes brasileiros, na Gávea correspondeu a apenas 33% do total em 2017. Isso graças às expansões das receitas com patrocínios, sócios torcedores e bilheterias – mesmo sem ter uma relação amigável com a administradora do Maracanã, a Odebrecht, as vendas de ingressos bateram recorde de rentabilidade no clube. Até as transferências de jogadores bateram no teto. O histórico do Flamengo era incontestavelmente fraco nesta linha de receita, com uma média de R$ 11 milhões arrecadados por temporada nos 15 anos anteriores. Como está com as suas contas no eixo, a direção rubro-negra pôde barganhar nas negociações do lateral Jorge para o Monaco e do atacante Vinicius Júnior para o Real Madrid. As duas vendas, mais uns quebrados, renderam R$ 129 milhões em 2017 – com o importante adendo que este valor considera apenas duas das três parcelas que o clube receberá do Real por Vinicius Júnior, tendo a terceira sido negociada para entrar no caixa apenas em 2019. A cifra dos R$ 129 milhões corresponde apenas ao que entrou de fato no caixa no decorrer da temporada. Ainda ficou crédito para o futuro.
As finanças continuam a melhorar. A administração tomou chacoalhões com as saídas recentes do diretor de futebol Rodrigo Caetano e do CEO Fred Luz – o primeiro demitido após insucessos, e o segundo desligado para se dedicar à eleição do liberal João Amoêdo para presidente (da República). Bandeira buscou soluções caseiras e promoveu respectivamente Carlos Noval, das categorias de base, e Bruno Spindel, este vindo do marketing. A política rubro-negra tem perspectiva de acalorar no segundo semestre. Bandeira está em seu último ano e ainda não abriu o jogo sobre a sucessão. As bases financeira e administrativa vão ser testadas pela política. E nada disso terá o mesmo potencial destrutivo (ou construtivo) do que o futebol. O torcedor se decepcionou ao não comemorar mais uma vez o título estadual em 2018, apenas a simbólica Taça Guanabara. Mas o time está vivo noutras competições. Venceu nas oitavas de final da Copa do Brasil, classificou-se em segundo lugar em seu grupo na Libertadores e lidera o Brasileirão até a 7ª rodada. O Flamengo tem tudo para conquistar títulos e acabar logo com a sina do campeão de balanço que não ganha nada. Senão é bom Bandeira preparar um bom monólogo sobre a herança futebolística rubro-negra.
Fonte: Epoca
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