Na virada da última temporada para a atual, o Flamengo tinha o elenco vice-campeão brasileiro e uma série de frustrações pela falta de conquistas de títulos.
Havia dinheiro também – R$ 100 milhões para contratações – fruto da boa gestão financeira dos últimos seis anos. A nova administração de futebol do clube decidiu fazer modificação no processo de contratações do clube para qualificar novamente o elenco que, atualmente, é líder do Brasileiro e finalista da Libertadores.
Quem conta como se deu essa história é o diretor de futebol, Bruno Spindel, um dos gestores do departamento juntamente com o vice-presidente de Futebol, Marcos Braz. Há ainda um ‘conselhinho’ de futebol para participar da tomada de decisões.
Esse grupo levantou uma ideia do que deveria ser o time do Flamengo. Depois, buscou que tipo de jogador seria necessário para cumprir essa proposta e rodou uma verificação via scout sobre cada um deles. Com isso, reduziu a quase zero os erros de contratações no clube nesta temporada 2019. São oito titulares contratados nesta temporada, todos com bom desempenho. Do antes desconhecido Pablo Marí ao “contratação-mais-cara-da-história” Arrascaeta. A chegada do espanhol, por sinal, abre portas para outros europeus na visão do diretor de futebol rubro-negro.
Spindel explica como foram tomadas essas negociações, e as conversas com os jogadores e a contratação de Jorge Jesus. Escapa habilmente ao falar se houve um erro na primeira escolha por Abel Braga. E, no geral, resume o que é a busca do departamento de futebol rubro-negro: a inquietação constante, o evitar a zona de conforto, o eterno temor de ser atropelado se ficar parado.
Blog: Como foi o processo para montar o elenco no final do ano passado? O que vocês fizeram? Identificaram o que precisava? Foram levantar números de jogadores? Conte um pouco do processo.
Bruno Spindel: Primeiro, foi um investimento grande do clube, investimento não quer só dizer recurso financeiro, quer dizer de tempo, foco na estrutura e nos processos. Antes de você identificar o que precisa para melhorar seu elenco, para que ele esteja em constante evolução, e o que precisa de recursos, precisa definir a ideia de como vai fazer isso. O clube tem o presidente, conselho de futebol, vice-presidente de Futebol que faz parte do conselho, tem um diretor de futebol. Neste processo se envolve de forma pesada o departamento de scout, uma área em que o clube investiu pesado.
Blog: Foi crescendo desde a gestão passada…
Spindel: E, além de tempo, que o departamento de scout fosse importante no processo. E a separação das responsabilidades. O departamento de scout participa do processo de avaliação do elenco junto com o treinador, comissão técnica, conselho do futebol, e diretor. E ele (scout) é fundamental na busca em termos técnicos, de futebol mesmo, tático, técnico, mental, de busca de atletas que vão atender as necessidades que são possíveis de atender do elenco. Primeiro identifica onde você quer chegar…
Blog: Então vocês tinham uma ideia de time que vocês queriam montar?
Spindel: Primeiro, (tinha) uma ideia de desempenho esportivo. Começa daí. O sonho e a identidade do Flamengo é sempre vencer qualquer coisa que esteja disputando. Lutar com todas as forças e recursos que sejam possíveis para vencer mesmo tudo que esteja disputando. E estar sempre indignado querendo vencer, crescer. Que (tenha) esse processo de insatisfação contínua que leva à melhoria de sair da zona de conforto. Aí a gente entendia que era perfeitamente possível você ter uma estrutura que brigasse de forma verdadeira para vencer da forma que quer o torcedor do Flamengo e que é a identidade do clube.
Blog: Que é uma forma ofensiva?
Spindel: Que é uma forma ofensiva, lutando sempre com todas as energias para vencer. Também o torcedor espera que o Flamengo jogue de uma forma ofensiva lutando para recuperar a bola rápido, a raça, comprometimento. A raça e comprometimento é lutar para querer mais durante o jogo. E depois de estar vencendo querer mais e mais. Quando estiver sem a bola, lutar para recuperar rápido. Isso que o torcedor e a marca Flamengo esperam. E que sejam muito competitivos e lutem com todas as suas forças pelos seus objetivos. Dentro de outros aspectos mais técnicos, que não convém aqui falar, isso é o que se buscava. Aí você faz uma análise do elenco onde pode melhorar. O financeiro e o planejamento vão entrar para chancelar o que é possível em termos financeiros. Dentro das suas necessidades, quais são os atletas que o clube necessita, aí o clube vai para o mercado para conseguir dentro das possibilidades financeiras ir atrás desses atletas. A comissão técnica que também tem esses valores e princípios do que o torcedor e clube esperam.
Blog: No início do ano, vocês tinham um orçamento que era de R$ 100 milhões para contratações a grosso modo?
Spindel: No Flamengo a gente sempre respeita o orçamento aprovado no Conselho de Administração do Flamengo. O que guia a nossa execução financeira é esse orçamento aprovado. O clube tem um estatuto e respeitamos demais o estatuto. No orçamento, tem uma verba de compra e venda definida. A gente já está quase em novembro. Posso, sob pena de pecar no número exato, acho que é aproximadamente esse número (R$ 100 milhões). Conforme o Flamengo foi gerando mais receita de venda, mais perspectiva, pudemos cumprir o orçamento em todas as rubricas.
Blog: Teve uma revisão no meio do ano no orçamento… (a revisão aumentou a previsão de verba para contratações que atingiu cerca de R$ 200 milhões)
Spindel: Uma revisão em que cumprimos todas as rubricas de folhas (salarial), de despesa e de compra e venda. Não ficou descasado compra e venda.
Blog: Vocês tinham previsto um valor inicial e a partir daí o que vocês investiram foi o que vocês estavam vendendo?
Spindel: Também, também, é isso.
Blog: Os jogadores que vocês conseguiram no início do ano, Gabriel, Arrascaeta, Rodrigo Caio, Bruno Henrique eram as escolhas A digamos assim? Todos os clubes fazem listas.
Spindel: Assim, não tem a visão de escolha A, escolha B. Temos a visão de jogadores que atendem as necessidades e características que o clube precisa. Todos, um princípio básico, a gente só faz as coisas que tem muita convicção. Não vamos trazer atleta para o clube que não tenhamos certeza que atendam os anseios e necessidades do clube, do torcedor, da identidade, e da performance esportiva do clube. Tem vários estágios da carreira de cada um. O clube pode decidir investir em um atleta que ainda não está pronto sabendo deste risco. Rodrigo Caio e Gabriel são atletas campeões olímpicos, Bruno Henrique foi para a Europa e teve uma temporada muito boa no Santos, depois teve o problema da lesão. Supercompetitivo. Arrascaeta, enfim…
Blog: Ainda assim vocês rodaram o scout de cada jogador?
Spindel: Até o Fabinho (membro do Centro de Inteligência do Flamengo) em uma entrevista que ele deu essa nossa visão: não é por que o atleta tem qualidade alta e carreiras muito boas que isso é uma garantia de acerto. Tem uma série de características de jogo. Um atleta pode ser adaptar a um estilo jogo e não ao outro. Tem uma série de questões que você tem que levar em conta para minimizar a possibilidade de erro. Talvez seja das que contem mais é a vontade do atleta e o tipo de projeto que o atleta quer abraçar. A gente quer no Flamengo atletas que queiram sempre mais, ser campeões, que estejam dispostos a pagar o preço. Porque os sacrifícios deles são enormes.
Blog: Como vocês identificam isso na conversa com os atletas?
Spindel: Tem conversas, tem olhar o que produz na vida, tem que falar com as pessoas que estão em volta. A conversa é muito importante. O atleta quando está conversando com o técnico ou dirigente, ele está assumindo uma série de compromissos. Está vindo para cá para lutar por todos os títulos, os sacrifícios são grandes, é um clube de pressão, maior clube do Brasil, maior torcida do mundo dentro de um país. Se for para a definição do fã, tem clubes que são globais. Mas de torcedor mesmo é o maior clube de torcida do mundo. Então é uma nação mais engajada no meio digital, vídeo views, Flamengo está entre os quatro, cinco do mundo. O atleta tem que estar disposto a buscar tudo que a gente espera. Todo mundo do clube espera em sua função que queira vencer sempre, seja melhor a cada dia, fazer os sacrifícios, ter foco.
Blog: Como vocês identificaram no meio do ano que precisavam ter outros jogadores? Por que no início do ano havia a ideia de formar um time para três anos do clube…
Spindel: Não, acho que já era uma qualificação que você não consegue executar em um mês, dois meses. As conversas com Filipe Luís e Rafinha duraram seis meses, mais de seis meses. Duraram mais de seis meses. São questões que não são simples. É mudança de vida. Qual o custo de vida, como é a cultura do país, a segurança, serviços médicos. Embora sejam brasileiros, são jogadores que ficaram 15 anos na Europa. Então são escolhas de vida e esportivas… Para a gente ficou claro. No caso de todos os atletas, mas estamos falando do Filipe Luís e do Rafinha… A escolha pela grandeza do Flamengo e por quererem conquistar todos os títulos possíveis e fazer todos os sacrifícios no maior clube do Brasil. Se isso for conquistado, pode marcar a história e a vida de cada um. É o que estão querendo aqui. E no caso do Pablo Marí…
Blog: Essa é uma história boa de contar. Como vocês identificaram ele?
Spindel: Jorge Jesus já conhecia o atleta da Espanha e do La Coruna. O departamento de scout identificou.
Blog: Foram paralelos esses movimentos?
Spindel: Foi paralelo. Jorge viu e o departamento de scout analisou e viu que julgou que tinha todas as características necessárias de um atleta para jogar no Flamengo. Precisava das questões de negócios. Contrato do atleta e do Manchester City. Mas também entender o que o atleta aspirava e se estava disposto a vir ao Brasil. E o Pablo foi assim “Bruno”. Você conversa sobre o que ele espera na carreira. “Estou disposto a ir para o Flamengo. Entendi o que é o Flamengo. Quero fazer história e desempenhar esportivamente no Flamengo. Não estou preocupado com o que vem depois. Não estou preocupado do Flamengo ser um estágio para eu voltar para um clube de poder financeiro da Europa. Estou preocupado em performar na minha carreira no Flamengo. Não estou pensando em mais nada. Não estou pensando depois. Quero chegar lá e arrebentar. Quero cair dentro desse desafio”. É um exemplo de uma resposta que você sente o que o cara está querendo. É um movimento para um jogador europeu que não é convencional.
Blog: Vocês começaram a olhar mais para esse tipo de jogador? Por que uma coisa é um jogador como Arrascaeta que está aqui no mercado e outros brasileiros que voltam e conhecem o clube. Você não precisa explicar tanto…
Spindel: Acho que sim. Conforme eles (europeus) forem performando aqui, tendo sucesso esportivo, ser bom para a carreira deles. Essa porta vai… Vai ser normal. Hoje não é normal. É normal sair da América do Sul para a Europa, Ásia. Flamengo tem a quinta maior média de público do mundo se não me engano. O ambiente que se encontra, essa mágica, acho que o atleta não vai encontrar em nenhum outro lugar do mundo. Isso começa a se espalhar. Essa magia começa a se espalhar. Esportivamente, Flamengo está conseguindo jogar um futebol diria dos mais altos padrões do mundo.
Blog: Quando começaram lá atrás, além da contratação, vocês escolheram um técnico que foi o Abel e depois escolheram um técnico de perfil muito diferente (Jesus) independentemente do mérito de cada um. Vocês erraram na primeira escolha?
Spindel: Vamos lá, falando de forma bem genérica. Tem características que você deseja que sejam preenchidas e às vezes um treinador pode preencher 80%, 90%, 100% é difícil. Aí foi escolhido o perfil do Abel. Não diria, dizer que a gente errou. Não vou entrar nesse mérito. Depois ocorreu o que ocorreu. Fomos campeões cariocas, classificamos na segunda fase da Libertadores, classificamos para as quartas da Copa do Brasil já com o Fera (Marcelo)… enfim, como jogadores, você o tempo todo está olhando para o mundo todo. Para atletas… Treinador não é diferente. É óbvio que entre você olhar e fazer a troca de um treinador vai um oceano. E a gente foi muito feliz na escolha do Jorge Jesus e a gente enxergava que, se ele não tem 100% das características que a gente espera para um treinador do Flamengo, tem 99,9% das caraterísticas, tem 100%. É insatisfeito, inquieto, quer vencer tudo sempre. O estilo de jogo que está encantando é a filosofia e ideia que atende a filosofia que o Flamengo espera. Foi uma escolha muito feliz.
Blog: Como vocês chegaram nele? Jorge Jesus tinha vindo ao Brasil para conversar com Vasco e Atlético-MG se mostrado interessado no mercado brasileiro… Ele chamou a atenção?
Spindel: A gente já conhecia o trabalho, acompanhava. Em um determinado momento que as coisas se desenrolaram resolvemos procurar o Jorge. A gente não sabia se ele ia querer vir para o brasil. Como jogador, é um movimento diferente. Ele tomou a decisão porque é apaixonado pelos jogadores brasileiro pela qualidade. Trabalhou com muitos. Pelo comprometimento, ele não cansa de elogiar. Ele viu que era um clube que ia dar condições de trabalho para conseguir o que move ele que são os títulos. Ele acorda, come, dorme futebol. O que move ele é conseguir o próximo título. Ele enxergou que o Flamengo dava essas condições. E ele entende a grandeza do Flamengo e do futebol. Ficamos felizes porque ele é fundamental por tudo que está acontecendo no clube.
Blog: Outros fatores citados na campanha: departamento médico recuperou jogadores em momentos cruciais em períodos curtos, voos fretados para minimizar desgaste, não liberar Reinier à seleção ou liberar em período determinado. Quão essencial foi isso na campanha?
Spindel: Todo detalhe na busca da excelência. Brasileiro são 20 clubes, e a Libertadores, 32 clubes. Se você parar, te atropelam. O que você fez de diferente e melhor, o do lado está vendo e vai fazer igual. Se você não seguir se movendo para frente, te atropelam. Departamento médico, estrutura, o gramado do Maracanã que melhorou…
Blog: Filipe Luís voltou a reclamar… (do gramado)
Spindel: Melhorou, ainda não é o ideal. Fazemos um esforço muito grande para melhorar o gramado que é uma coisa fundamental. Cada detalhezinho conta e vale muito. Isso conta e vale demais cada detalhe para você ser um pouco melhor do que os adversários, melhor fisicamente, melhor mentalmente, ter condições melhores.
Blog: Você que está há bastante tempo no clube, entende que foi uma construção conjunta de outros gestões e não só dessa temporada?
Spindel: Trabalho duro, de dia a dia. Acho que não se constrói nada sozinho, nem do dia para a noite. Vencer passa por muitos detalhes e dedicação. E acho que o que se conseguiu acertar esse ano em termos de todos esses aspectos do futebol foi uma evolução muito grande. Sem desmerecer ninguém. O resultado fala por si.
Blog: No início do ano, você tinha a perspectiva de que montariam a maior parte do time e acertariam quase todas as contratações proporcionando rendimento dos jogadores? Não é difícil conseguir isso no futebol?
Spindel: É difícil demais. Mas o que a gente queria era trabalhar 24 por sete, fazer todo o esforço para atingir nossos objetivos. Então você não sabe se vai atingir, 20 times no Brasileiro, 32 na Libertadores, agora dois, nós e o River. A gente quer demais, e eles também vão querer. Querer mais do que a gente ninguém vai. Então passava muito por isso aí. E tem que ser sempre assim. Se a gente for campeão… Espero que a gente seja campeão. No dia seguinte, começa a fome de novo. Ou te atropelam.
Blog: No início do ano, a ideia era da diretoria era que tivesse um time pronto para três anos, e agora só teriam que resolver a questão do Gabigol neste final de ano (compra dos direitos junto à Inter de Milão)?
Spindel: Não pode parar nunca. Tem que evoluir sempre, em tudo. A gente não para nunca de buscar onde a gente pode evoluir. Não vou te dizer onde é. Não estou falando de jogador, não falo que vamos mudar o elenco. Um dos nossos papéis é estar sempre insatisfeitos e abrir sempre uma vantagem maior ainda para nosso competidor. Não posso parar. Todo tempo que tiver vou dedicar a isso. As pessoas que estão aqui terem essa cultura, esse desconforto constante de que se parar, vão me atropelar. Porque ser campeão é dificílimo. É só ver como é competitiva a competição na América do Sul. É o que move a gente.
Fonte: UOL — Blog do Rodrigo Mattos
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